A minha infância foi marcada por um ritual que muitas vezes eu achava tedioso, mas pela obrigatoriedade fazia sem reclamar: pedir bênção a todos e todas parentes mais velhas assim que eu chegava num lugar. Cansei de chegar da escola ou de qualquer lugar e estar reunida em frente a casa de vovó uma roda de pessoas que ia da minha bisavó à irmã mais nova da minha mãe (minha tia), e da ponta mais velha até a mais nova algumas tias-avós também. Lá íamos nós pedir bênção de uma a uma para então entrarmos e matarmos a fome.
Eu sei que, apesar de ser nova, as coisas hoje acontecem de uma forma um tanto diferente. Com o tempo os comportamentos vão mudando de acordo com as demandas, os estilos de vida etc. As famílias estão “menores”, os parentes costumam morar mais distantes e a ligação torna-se diferente: a famosa família nuclear está a se formar.
Quem acostumou a viver desta segunda formar ao começar a frequentar uma casa de Candomblé logo nota a diferença porque vai ter que começar a fazer o que eu fazia aos 7 e dessa vez de forma mais aprumada e ainda tendo que ter a educação que muitas vezes não é exigida pela espontaneidade da criança: abraçar, perguntar se tá tudo bem, falar qualquer amenidade. Isso com 10, 20, 30 pessoas a depender do dia e do tipo de função… Sim, isso pode ser bem cansativo, mas a gente não pode reclamar.
Ao ser iniciada e passar por todos os procedimentos rituais a gente aprende de forma muito enfática que agora fazemos parte de uma família: aquelas 10, 20, 30 pessoas são nossa família, escolhemos e aceitamos o elo, aceitamos a eternidade desse elo. Há quem vá dizer agora “Mas elo eterno é com o Orixá!”, sim, está subentendido e exatamente pelo elo eterno ser com o Orixá nele vem “omitido” todas as pessoas que estavam vinculadas ao lugar e a família na qual você foi iniciada ou iniciado, queridx omorixá. Uma energia não surge do nada, você nasceu em alguma casa de axé, em alguma família de axé, foram necessárias mãos para que tudo ocorresse, então tudo isso estará contido na tua história com o teu Orixá. Do mesmo modo que Orixá sabe de onde está vindo aquele sacrifício que ele está a receber ele também sabe quem participou do grande momento de concepção do seu filho ou filha para ele. Estamos falando de energia que se materializa, mas que está presente em toda parte. Não sejamos ingênuas ao ponto de pensar Orixá tão limitado como somos nós…
Por causa do pertencimento, do berço, da família que ganhamos, é exigido de nós postura, respeito, bom comportamento. A partir de agora eu represento a mim, o caminho de Ori, o meu Orixá, represento a minha ascendência. A gente pode considerar isso um peso ou então perceber o quanto isso pode trazer benefícios pra vida em âmbitos fora desse mundo religioso.
Há quem goste de separar “no barracão devo me comportar de tal forma, fora dele, salve-se quem puder”. Isso me confunde. A gente percebe que realmente internalizou um aprendizado quando usamos dele aonde nem imaginaríamos. Por exemplo, eu gosto um pouco de uma afronta. Às vezes ela é pode ser bem-vinda para a situação. Mas eu posso pensar antes de engolir a corda que estão me dando: isso vai me beneficiar? Vai melhorar o ambiente de alguma forma ou só vai criar mais um aperreio? Isso é realmente da minha alçada? Quando o sangue esquenta os “olhos” (leia-se juízo) costumam cegar mesmo, mas sempre há aqueles 5 segundos em que dá pra gente ponderar as coisas.
Em Yorùbá as palavras casa, terra e o planeta Terra vêm de palavras incrivelmente semelhantes: Ilé, Ilè (há um ponto embaixo do e) e Ilé Ayé. Percebam que somente o som das vogais que mudam o sentido entre elas. Enquanto na língua portuguesa as palavras soam tão diferentes, no yorùbá é tudo bem parecido. Isso não é coincidência. Se é tudo tão semelhante é porque nossa conduta deveria ser semelhante também nos diferentes ambientes. O que nós queremos de bom na nossa casa, no chão em que pisamos, no planeta que habitamos? Acredito que não queremos coisas tão diferentes para cada um: desejamos o mínimo de harmonia, que a dor não exista, que a fertilidade esteja presente… Então o que é ser Ìyàwó? Eu responderia: viver nestes três “mundos” como o único mundo que ele de fato é. Não somos Ìyàwós pro barracão, somos Ìyàwós pro mundo.
Egbon Dayane Oyakole
[…] Fonte: ocandomble […]
Gostei muito do blog. Esse programa foi ao ar na TV BANDEIRANTES anos atrás. Ele retrata a situação atual. Surpreendente
youtube.com/watch?v=I4PQ0A4dRbM
Olá,gostaria de esclarecer uma dúvida sobre ansiedade e depressão em pessoas que são do santo,pq tenho visto alguns casos de pessoas dedicadas e tudo mais e acabam passando por isso e vejo que esse tema quase nao é falado no meio africanista a saúde mental.desde já agradeço
Oi Bruno,
Você tocou num assunto muito pertinente. Falar de saúde mental ainda é algo sensível dentro e fora da religião porque qualquer problema cai na área da “fraqueza”. Pessoas com ansiedade e depressão ainda hoje, mesmo sendo algo tão comum ultimamente e o Brasil ser conhecido hoje como o país do rivotril, são vistas com certo receio.
A religião, não só o Candomblé, pode dar suporte no tratamento dessas doenças, mas conversar abertamente sobre a quantidade de iniciadas e iniciados que passam por isso é outra história porque ainda há um certo tabu. Não é tabu religioso, é um tabu social. Qualquer pessoa, seja lá de qual grupo for, encara dificuldades em aceitar os diagnósticos e em conversar sobre ele com as pessoas por receio de como vai ser vista. Nós somos estimulados diariamente a sermos “fortes”, bem resolvidos, rápidos, proativos, eficientes, bem sucedidos… Tudo isso muito ligado a ação. Só que nós não somos somente isso, não somos somente a ação. Da mesma forma que paramos pra cuidar de Ori no terreiro, tentamos limpar a mente do que está lá fora em busca de um contato maior com essa energia interna, devemos fazer isso também no nosso dia a dia.
Penso que nesse quesito também entra o que eu falei no texto acima: trazer pro cotidiano os aprendizados. Todo mundo fala muito que o tempo no barracão corre diferente do tempo fora do barracão, etc, etc, etc… Isso logo de cara é bonito, traz uma aura diferente, mas não é pra ser somente bonito, é pra servir pra gente de alguma forma, pra gente trazer pra vida. Esse é um ponto, mas não o ponto da questão, no caso.
Nós precisamos conversar sobre, tirar o assunto dessa gaveta do tabu, do impróprio. Já há pesquisas sobre saúde mental e Candomblé feita por estudantes e grupos de pesquisas em universidade. Falta nós mesmos falarmos sobre isso agora.
Axé.
Mo juba Iyá.
Eu adorei a pergunta desse rapaz.
Mas, vemos que esse mal não é pertinente ao mundo das casas de ase.
É um problema maior e as casas de Ase que estão interessadas em cuidar de sua família, tem que ter a certeza de seu papel dentro do contexto, Ori, que vai englobar desde os medos mais frequentes até as doenças do espirito e suas complexidades. Passando pela psicologia e dando um pulinho na psiquiatria, por que não.
Nossas casas são verdadeiros hospitais da alma, os sacerdotes que enxergaram isso, estão cuidando da saúde mental e espiritual de seus filhos com zelo e buscando uma forma de orientação e cuidados.
A raiz de cada problema, tem seu início, tem seu meio, porém, o fim não conhecemos. Somente com a ajuda do oráculo, do conhecimento teórico do sacerdote, do ase de sua mão/boca, da medicina e por que não, com a ajuda de uma entidade muito evoluída poderemos alcançar o local onde a corda se rompeu.
O que leva a pessoa a uma depressão?
Com a palavra os médicos.
Mas, podemos perceber à nossa volta os males dessa doença.
Estou a traduzir um livro de uma grande Babalawo da cidade de Ilé Ifé, chamado Fasina Falade e ele fala constantemente de caráter e dos mandamentos sagrados riscados por Olódùmarè e trago até nós pela voz de Ifá e decifrado por Ọrùnmìlà.
Vemos nas páginas desse livro o quanto poderia ser evitado de males a sociedade se tivéssemos compreendido esses ensinamentos.
Em uma passagem Ọrùnmìlà diz que:
“Permita que todos os homens andem pelo caminho que Olódùmarè ordenou que andassem.
O mundo é um lugar simples, foi a confusão dos seres humanos que criaram e trouxeram esses problemas.
Olódùmarè criou as coisas de forma simples para confundir os tolos”.
Ora se todos seguissem a simplicidade plantada e ditada pelo Criador de todas as coisas, o quão simples seria nossa vida, o quanto de problemas decorrente de atitudes alheias seriam evitados, incluindo a tal depressão, solidão, stress, angustia, medo e etc., enfim, hoje temos pessoas de caráter duvidoso, de caráter ruim, tais como ladrões, agressores e etc., frequentando casas de Ase, tomando cargo e se iniciando achando que poderá ficar escondido sob o manto do sagrado.
Há Olódùmarè, que tudo vê e penetra nos corações mais escuros e trevosos.
Como em Òyékú’L’Ogbè onde Ifá diz:
O que quer que façamos em segredo, não há o que Olódùmarè não vê
Esta foi a declaração de Ifá para Jénmí,
O filho de Òşún
O que quer que façamos em segredo, não há o que Olódùmarè não vê
Esta foi a declaração de Ifá para Ẹmílàíyìn,
O filho de Ợbatálá
Jénmí, você é verdadeiramente o filho de Òşún
Ẹmílàíyìn, você também é o filho de Ợbatálá
Tudo o que é dito em segredo
Ifá certamente irá expor e trazê-los para o aberto
Esse tipo de doente, também de uma certa forma inconsciente está buscando a cura para o seus males. Mas, Ori sempre obedecerá aos desejos da mente e da vontade, não há como lutar contra esse poder destrutivo. E a guerra será travada dentro do peito, na solidão da noite/dia, até que eclodirá de uma forma doentia e penetraremos no amago de sua pergunta/constatação.
Não é apenas a depressão, é além disso. Não que o mal da sociedade moderna não seja um mal tão forte e pesado quanto os citados. Quero apenas descortinar a janela e olharmos com vontade o que tem do lado de fora e vermos “que o bicho é feio e tem um buraco no meio”.
A solução passa obrigatoriamente pela mão do sacerdote maior do Ile Ase, por mais que deixemos o livre arbítrio falar mais alto, temos que buscar com mais veemência e embasamento o enquadramento dessa pessoa, via oráculo.
Não temos base medica para nos orientarmos, mas, temos como trabalhar e tentar melhorar o caráter desses Ori buruku.
Ọsá mèjì fala das Brigas de Ògún com a esposa e sentencia ao final do verso que marido e mulher não deveriam se maltratar tanto, então, temos ou não temos um quadro que pode desenvolver uma depressão?
Quem sairá perdendo com essa guerra?
Aqui vemos o início da corda, vemos o meio do caminho e sabemos onde a corda partiu.
É nesse ponto que eu gostaria de chegar e dizer que um sacerdote versado tem muito a fazer pela sua família de Ase.
Cabe a ele sair da poltrona e andar entre seus filhos e, talvez, passar a conhece-los melhor, quem sabe os casos narrados pelo amigo internauta possam ser detectados a tempo de uma debandada.
Ire alaafia
Excelente depoimento e história. Vou te seguir.Se achar conveniente me segue
Dayane esse texto é lindo e inspirador. Não só ele como as respostas. Muitas vezes no blog as perguntas e respostas vão formando um enredo que se completa, e quando surge alguma dúvida sobre agora ele eu entro antes nas perguntas e respostas para ver se algo parecido já foi perguntado. Teve uma resposta sua sobre iniciação que me inspirou muito, peguei ela como se também fosse pra mim.
Há muito em jogos me disseram que precisaria de iniciação, isso acabou me assustando. Olha, inicia senão perde os bens, você vai enlouquecer. Como eu já escrevi uma vez, saí dá fé cristã por não me identificar com o fato de ter uma postura correta em relação ao meu próximo por medo de castigo, não creio que a fé deva se basear em medo. Não me iniciei até hoje, e não fiquei louca ou qualquer coisa do tipo. Hoje essa vontade está em mim, e veio só por amor.
Assim como a postura adequada devemos ter por vontade própria, não pode medo do que quer que seja. Que venha de dentro pra fora a transformação e a evolução.
Axé
E que você continue inspirada sempre a escrever esses textos que tocam nosso coração
Fernanda, Olá!
Não sou mais assídua no blog por causa agora do mestrado, mas hora ou outra venho vê-lo e é muito bom ainda, apesar dos mais de sete anos de blog, ler comentários como o teu.
A espiritualidade pede emergências sim, mas às vezes nós estamos precisando de cuidado pra ontem. Mas também às vezes o que mais precisamos é de calma e orientação. Eu já vi orientação e um copo d’água surtirem um ótimo efeito tranquilizador. Eu acredito que o lance é ter o tato e a sensibilidade de saber quando é uma coisa ou outra.
Obrigada pela visita e pelo comentário. Que Oyá te beije com bons ventos! Axé!
Dayane