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Archive for Setembro, 2017

O cerco que quer nos fechar

Na manhã deste domingo, 24 de setembro de 2017, começou a circular pelos grupos do WhatsApp um relato de um fato ocorrido durante a celebração religiosa em um terreiro de Olinda, PE. Não divulgarei nomes, pois não pedi autorização para isso. Antes de falar sobre escreverei trechos do relato:

“Esta noite fomos surpreendidos por 4 homens (…). Enquanto Oxun seguia como presente para o rio, vivemos momentos de pânico dentro do terreiro. Muitos tiros e furtos de celulares. Impressionado com a ousadia, Graças aos nossos ancestrais ninguém ficou ferido. Estava em pânico no primeiro andar de casa, rendido por um dos meliantes enquanto ouvíamos os disparos e gritos vindos do salão, imaginando uma chacina. Tudo terminou bem. Segue para nós o exemplo. Um dos assaltantes gritou dizendo que iria calar o cão. Benção a todos”.

Viver num clima de insegurança constante já se tornou um sentimento “banal” para todas nós em praticamente todas as cidades do Brasil. Apesar da “normalidade” não vivemos um momento de paz e segurança. Apesar da ausência oficial de uma guerra, a sensação em que todas as pessoas vivem é de estarmos no meio de um conflito correndo risco de vida em todos os momentos dentro e fora de casa. Acredito que não falo nenhuma novidade aqui.

O relato é chocante e assustador e seria tão chocante e assustador quanto se ocorresse numa padaria, num centro espírita, numa igreja… Mas o que o torna ainda mais assustador é o teor da frase descrita no relato: “um dos assaltantes gritou dizendo que iria calar o cão“. Não é somente o furto, não é somente o assalto. Estamos agora falando de ódio, de intolerância, de preconceito. Isso aliado aos relatos recentes de destruição de terreiros por intolerância religiosa nos deixam mais alertas e, obviamente, com mais medo, pois nós, povo de terreiro, estamos à mercê de mais um nível de violência. O que nos acontece é motivado por um clima de ódio cada dia mais motivado.

Esse clima de ódio causa-nos medo. Temos medo de tocar, temos medo de fazer nossos ritos públicos. Temos pedido proteção policial para abrirmos nossas portas. Não por medo de assalto, e sim por medo da invasão motivada pelo ódio. Qual tipo de templo precisa disso para funcionar publicamente? Você já viu esse tipo de situação acontecer com uma igreja, um templo budista, um centro espírita aqui no Brasil? Não somos todos iguais, não vivemos em um ambiente de simples intolerância religiosa. Esta intolerância direcionada para terreiros de religião afro-brasileira ainda é motivada pelo racismo. O racismo religioso existe e está agora mostrando ainda mais a sua face perversa, excludente e aniquiladora.

Assim como em África ligaram a figura de Exu ao diabo nos tempos da colonização, séculos depois ainda relegam a nossa religiosidade o lugar do obscuro de uma crença que não é nossa.  Eu ainda provoco olhares de reprovação ao andar de branco e de ojá na cabeça na rua, na universidade. Juízes ainda ignoram nosso sistema de crença como religião. Grupos ainda nos consideram primitivos evolutivamente.

Se em um país onde o direito a praticar uma religião é direito garantido e, ainda assim, precisamos pedir proteção institucional, isso significa categoricamente que não estamos em um estado de normalidade. Todos dias temos um direito a menos. Retirada de direitos respaldada por grandes grupos que compõe os poderes legislativo e executivo e que no contexto atual estão com suas ideias conservadoras e repressoras cada vez mais fortalecidas e atuantes. Isso pode custar (e custa!) vidas. Todos estes elementos estão conectados. Não podemos perder isso de vista.

Não precisamos falar sobre isso. Precisamos agir urgentemente sobre isso.

Dayane Silva (Oyakole)

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Ubuntu: a filosofia africana que nutre o conceito de humanidade em sua essência

Burundi – Foto: Virginia Maria Yunes

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Uma sociedade sustentada pelos pilares do respeito e da solidariedade faz parte da essência de ubuntu, filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. Na tentativa da tradução para o português, ubuntu seria “humanidade para com os outros”. Uma pessoa com ubuntu tem consciência de que é afetada quando seus semelhantes são diminuídos, oprimidos.

– De ubuntu, as pessoas devem saber que o mundo não é uma ilha: “Eu sou porque nós somos”. Eu sou humano, e a natureza humana implica compaixão, partilha, respeito, empatia – detalhou em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Dirk Louw, doutor em Filosofia Africana pela Universidade de Stellenbosch (África do Sul).

Dirk conta que  não há uma origem exata da palavra. Estudiosos costumam se referir a ubuntu como uma ética “antiga” que vem sendo usada “desde tempos imemoriais”. Alguns pesquisadores especulam sobre o Egito Antigo (parte de um complexo de civilizações, do qual também faziam parte as regiões ao sul do Egito, atualmente no Sudão, Eritreia, Etiópia e Somália) como o local de origem do ubuntu como uma ética, mas o próprio fundamento do ubuntu é geralmente associado à África Subsaariana e às línguas bantos (grupo etnolinguístico localizado principalmente na África Subsaariana).

Burundi – Foto: Virginia Maria Yunes

– No fundo, este fundamento tradicional africano articula um respeito básico pelos outros. Ele pode ser interpretado tanto como uma regra de conduta ou ética social. Ele descreve tanto o ser humano como “ser-com-os-outros” e prescreve que “ser-com-os-outros” deve ser tudo. Como tal, o ubuntu adiciona um sabor e momento distintamente africanos a uma avaliação descolonizada – contou o especialista e membro-fundador da South African Philosopher Consultants Association.

Na esfera política, o conceito é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária. Dirk lembra que também existe o  aspecto religioso, assentado na máxima zulu (uma das 11 línguas oficiais da África do Sul) umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) que, aparentemente, parece não ter conotação religiosa na sociedade ocidental, mas está ligada à ancestralidade. A ideia de ubuntu inclui respeito pela religiosidade, individualidade e particularidade dos outros.

Dirk (à esquerda) com professores da Universidade de Stellenbosch

Ubuntu ressalta a importância do acordo ou consenso. A cultura tradicional africana, ao que parece, tem uma capacidade quase infinita para a busca do consenso e da reconciliação (Teffo, 1994a: 4 – Towards a conceptualization of Ubuntu). Embora possa haver uma hierarquia de importância entre os oradores, cada pessoa recebe uma chance igual de falar até que algum tipo de acordo, consenso ou coesão do grupo seja atingido. Este objetivo importante é expresso por palavras como Simunye (“nós somos um”, ou seja, “a união faz a força”) e slogans como “uma lesão é uma lesão para todos” (Broodryk, 1997a: 5, 7, 9 – Ubuntu Management and Motivation, de Johann Broodryk).

Uso da palavra com a democracia na África do Sul 

Após quase cinco décadas de segregação racial apoiada pela legislação, o processo de construção da África do Sul no pós-apartheid exigia igualdade universal, respeito pelos direitos humanos, valores e diferenças. Desta forma, a ideia de ubuntu estava diretamente ligada à história da luta contra o regime que excluía a cidadania e os direitos dos negros.

Dirk conta que ubuntu é muito usado em contextos sobre repressão e colonialismo. Na verdade, o filósofo político Leonhard Praeg destacou que, por meio da pergunta “O que é Ubuntu”?, o tema africano procura autenticidade cultural e, portanto, a liberdade de um passado (e presente), representada pela opressão ocidental e pelo neocolonialismo.

Ubuntu The first Ubuntu Walk 2013 2
Ubuntu The first Ubuntu Walk 2013 – South Africa

– O advento da democracia na África do Sul, em 1994, pode ter servido como um catalisador nesse sentido. Na mesma linha, Mogobe Ramose comparou ubuntu à “verdadeira justiça para os povos indígenas conquistados nas guerras injustas do colonialismo” – disse Dirk.

Veja mais: O jogo que uniu a África do Sul 

O filósofo acredita que é preciso reconhecer a diversidade de línguas, histórias, valores e costumes, os quais constituem a sociedade sul-africana. Como exemplo, ele cita que os sul-africanos brancos tendem a chamar todas as práticas da medicina tradicional africana de “bruxaria” e rotular todos esses praticantes como “curandeiros”. No entanto, de acordo com a obra Ubuntu Management and Motivation, de Johann Broodryk,  há, pelo menos, cinco tipos de médicos nas sociedades tradicionais africanas, e os curandeiros estão sendo apontados como algo ruim pelos próprios africanos. Por outro lado, a cooperação dos outros curandeiros tradicionais é vital em iniciativas de cuidados de saúde primários, como planejamento familiar e programas de imunização (Broodryk, 1997a: 15; 1997b: 63f).

Individualismo e Ubuntu 

Angola – Foto: Isabel Maria Vale

O professor de filosofia conta que o individualismo ressalta aspectos aparentemente solitários da existência humana, em detrimento dos aspectos comuns. Para o coletivista, a sociedade nada mais é que um grupo ou uma coleção de solitários indivíduos. No Ocidente, o individualismo, muitas vezes, se traduz em uma competitividade impetuosa. Isso está em contraste com a preferência africana para a cooperação, o trabalho em grupo ou Shosholoza (trabalho em equipe). Veja no link a seguir! 

Veja mais: Shosholoza: o hino das torcidas (brancas e negras) sul-africanas 

– Existem aproximadamente 800.000 “stokvels” na África do Sul, que são empresas comuns ou empreendimentos coletivos, tais como clubes de poupança e sociedades funerárias. A economia stokvel poderia ser descrita como o capitalismo com Siza (humanidade) ou uma forma socialista do capitalismo. Fazer lucro é importante, mas nunca se envolve a exploração de outros. Como tal, os stokvels são baseados no “sistema de família alargada” – exemplificou Dirk.

Desde 1990, a palavra vem sendo usada por muitas personalidades sul-africanas como Nelson Mandela, Desmond Tutu, Walter Sisulu (ativista sul-africano contra o apartheid) e Credo Mutwa (sangoma, representante da medicina tradicional africana). O conceito de ubuntu inspira além das fronteiras africanas e indica uma forma de tratar o semelhante como o melhor caminho para a humanidade.

Arquivo de Nelson Mandela - Divulgação
Arquivo de Nelson Mandela – Divulgação

Nelson Mandela (Prêmio Nobel da Paz de 1993)

“Um viajante em visita à África do Sul poderia parar em uma aldeia sem ter que pedir comida ou água. Uma vez que ele para, as pessoas dão-lhe comida. Esse é um aspecto do ubuntu, mas o ubuntu tem vários aspectos. O ubuntu não significa que as pessoas não devem enriquecer. A questão, portanto, é: Você vai fazer isso e permitir que a comunidade ao seu redor possa melhorar?”

Desmond Tutu (Prêmio Nobel da Paz de 1984)

Desmond Tutu – Foto: ONU

“É a essência do ser humano. Ele fala do fato de que minha humanidade está presa e está indissoluvelmente ligada à sua. Eu sou humano, porque eu pertenço. Ele fala sobre a totalidade, sobre a compaixão. Uma pessoa com ubuntu é acolhedora, hospitaleira, generosa, disposta a compartilhar. A qualidade do ubuntu dá às pessoas a resiliência, permitindo-as sobreviver e emergir humanas, apesar de todos os esforços para desumanizá-las.”

A proposta de família alargada, que abraça toda a comunidade fortalecida a partir da ajuda mútua, sanando o sofrimento alheio, traz consigo a ideia da superação de diferentes tipos de discriminação, relacionados, por exemplo, à cor da pele, gênero, orientação sexual e religião.

– Deve ficar claro que ubuntu se opõe à discriminação negativa, seja contra homossexuais, mulheres ou por motivos de raça. No entanto, pode-se argumentar que a compreensão de Thaddeus Metz (filósofo americano) se resume a uma interpretação liberal, emancipatória do ubuntu. Nem todas as versões ou interpretações de ubuntu são iguais – completou Dirk.

Este conteúdo pertence ao Por dentro da África. Para reprodução, entre em contato com a redação.

Por dentro da África 

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