“A igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa”. Eduardo Galeano
Ver o nascimento do orixá, perceber o desenvolvimento da interação entre filhos e seus orixás e sentir em minha própria pele uma morada para Oyá me faz perceber na vivência religiosa atos de amor e devoção onde o divino, o sagrado, não está acima, não está ao meu lado: ele está em toda parte, inclusive dentro de mim, e faz do meu corpo, do corpo de todas as filhas de santo uma festa para si e para os que veem a chegada do orixá, a presença do orixá.
Nosso corpo é um altar e como altar precisa de cuidados e preparo para receber a energia que levanta nossos poros. É por isso que desde o princípio é o nosso corpo como um todo que recebe os devidos preparos para ser purificado e facilitar a manifestação e chegada do orixá. É interessante sentir e presenciar o começo do surgimento dessa relação: as primeiras dúvidas, os primeiros medos, as primeiras reações ao sentir o desconhecido palpitando no meio do peito, que com o tempo se tornará mais do que conhecido: se tornará natural, necessário, amado. O corpo se transforma. Aos poucos, a sensação que causara algum desconforto por ser desconhecida passa a ser uma sensação de entrega, de arrebatamento, de encontro com a energia que mais converge com a nossa própria energia individual. O momento de dar as mãos ao orixá e deixar que ele tome conta do nosso corpo e dite a sua própria dança, a sua própria história e traga para este mundo tão caótico, tão cansativo, a suspensão, ainda que momentânea, das dores, dos alvoroços no meio do peito, das agonias e preocupações tão cotidianas que nós estamos fadados a passar no dia a dia.
O meu corpo é um altar e sentiria falta de Oyá se ela me faltasse. E é para que ela não me falte que eu cuido dele, é para que ela não me falte que ele é cuidado periodicamente dentro dos rituais da minha casa, dentro dos nossos preceitos.
Percebo essa questão do corpo (e quando falo corpo também incluo a cabeça) como um elemento de suma importância desde a entrada da pessoa na religião até o seu processo contínuo de renovação de axé. E isso pode ser observado para onde os rituais são direcionados: primeiro se faz as limpezas, os ebós para transferir as energias negativas para os elementos utilizados e propiciar a abertura para as energias positivas, posteriormente a isso temos o ritual da lavagem de cabeça (dentro da minha raiz) que já pegará um corpo limpo para purificar ainda mais o elemento principal nosso: nossa cabeça, para assim continuar com os rituais que já foram predeterminados pelo jogo. Falo de maneira bastante superficial dessas etapas, pois cada um tem suas particularidades, mas já aqui podemos perceber que se o cuidado com o corpo é tão intenso e presente é porque ele passa a representar algo muito importante a partir do momento que decidimos nos ligar ao axé. Isso não significa que deverá haver algum tipo de celibato ou resguardo eterno, pois o corpo não é culpa, é também nosso e serve para nos propiciar prazer também. A alegria de viver está também dentro disso.
Quando falo do corpo espero que compreendam que não falo somente da parte física, material da questão. Quando atento para a importância do corpo não é só para o fato de que ele esteja “limpo” nos momentos em que deve estar. Falo do corpo como um elo, como um elemento que foi transformado num elo e é partir dele que estabelecemos o nosso contato, a nossa conexão com o orixá não somente através da manifestação, mas do pensamento, da reza, da fala, da conversa… Tudo isso gira em torno do nosso corpo, sai de nós.
Noto que há uma necessidade, uma busca incessante de conhecimento (e isso é muito bom), mas noto também que há uma falta de responsabilidade individual enorme entre adeptos e adeptas da religião. A minha ligação mais importante é com Oyá! Não é somente com a minha casa, não é somente com a minha mãe de santo. Se nós duas estamos bem, tudo fica bem, se não estamos outros tantos problemas surgirão. Nossos principais rituais visam a construção e fortalecimento desta ligação, mas se não nos comprometemos individualmente na hora do silêncio, na hora em que estamos sozinhos em recolhimento ou em reza essa ligação não criará essência e não vai ser somente tempo de feitura que nos fará construir isso. O cuidado é contínuo.
Axé,
Dayane de Oyá
Motumbá! Lindo texto! Parabéns!
Dayane linda reflexão, vou dar uma pequena colaboração com um provérbio yorùbá que tem muito a ver com o que você descreveu.
As mãos pertencem ao corpo e os pés pertencem ao corpo.
Grande parte do trabalho espiritual na adoração de Òrìsà envolve limpeza do corpo e do espírito, para que todas as partes do seu Eu estejam trabalhando em harmonia.
Para dizer que as mãos pertencem ao corpo e os pés pertencem ao corpo significa que ambos devem trabalhar juntos para dar suporte ao corpo.
As mãos são usadas para ajudar o corpo no cuidado das necessidades pessoais, enquanto os pés nos levam para o mundo.
O provérbio é uma clara referência à necessidade de equilibrar as necessidades do Eu com as necessidades da comunidade e, além disso, com o ambiente em que vivemos. Variações sobre este provérbio falam das mãos e pés se movendo em direções diferentes.
Por exemplo, se as mãos são levantadas num gesto de autodefesa, enquanto os pés estão em fuga, mãos e pés estarão em conflito um com o outro.
O trabalho de comentar o provérbio está a cargo do Áwo Fa’lokun.
Epá Òya Obìnrin ngba ndikan.
Òya mulher forte e poderosa.
Ire alaafia.
Grande! A cultura africana, afro-brasileira, é diametralmente oposta à ocidental. É muuuito outra coisa. Muito bem sacado esse esclarecimento.
Concordo…com vc…o corpo e nosso templo…nosso veiculo em nossa jornada nessa orbe…gostaria de continuar recebendo, suas reflexoes e se possivel repassa-las.
Dayane de Oyá,é sempre um prazer ler os seus “posts”!Como faço para te conhecer pessoalmente?Existe possibilidade?
Bom dia, Dayane,
Tinha que ser de Pernambuco, pra falar com tanta propriedade e clareza!
Tô brincando, sou de Pernambuco e puxo pra minha sardinha.
Se o texto é bom, que é !!! Os comentários só estão contribuindo para fazermos uma reflexão. Alguém postou: “A cultura africana é completamente oposta à Ocidental” Que bom!!! A nossa, entendo como melhor, sem dicotomias antagonizantes, sem um corpo cheio de culpa, de pecado, desgraçado, sem a mulher responsável pela infelicidade da humanidade… Sem a hipocrisia do tabu sexual, posto pelo Cristianismo, todavia, temos respeito, conduta moral e parcimônia.
O nosso corpo é partícula do orixá, são somos criaturas como no Cristianismo, a religião dos orixás é de caráter imanente, isto, a energia, o axé permeia todo o universo, inclusive o ser humano.
Um abraço.
Vocês são arretadxs, viu?! hahahaha
Obrigada pelas palavras e pelo estímulo!
Cheiros e axé!
Dayane
Samantha, obrigada!
Se nós estivermos em lugares próximos haverá possibilidade sim, não há problemas. Como disse o Mário, eu sou pernambucana, de Recife. 😀
Axé,
Dayane
Mário,
A terrinha é a terrinha.. hahaha
Então, é muito bom mesmo quando a gente escreve e tem os feedbacks de vocês com concordância ou discordância. Precisamos realmente refletir sobre a religião e não somente discutir qual “orixá como com quem”.
Gostei dessa frase sua: “sem a mulher responsável pela infelicidade da humanidade…”. Se pensarmos que o machismo e o patriarcalismo é fortalecido por tantas religiões e tratado até como um dogma indiscutível e não colocarmos isso em cheque seremos coniventes com as desigualdade de gênero e as mortes ocasionadas por isso. Afinal, “Se você está diante de uma injustiça, e se omite, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu)
Axé,
Dayane
Axé, Thiago!
Esse afoxé agora se chama Oyá Tokole e continua lindo! ❤
Epá hey!
Texto sincero! Lindo!
Dayane,
Mesmo eu não seja nem do Brasil nem criada no Candomblé, tenho sentido uma emocão tão indéscrivel que estou escrevendo pra vocë. Vocë tem falado uma realidade de semejante ressonäncia pra mim, embora eu näo pudesse descreverla até hoje, a entendí inteira. Comovente.
Nossa, Andrea… Se mesmo não sendo do Brasil e nem criada no Candomblé ainda assim se sentiu tocada pelo texto eu fico muito feliz de verdade. Axé!
Aqui no blog o grupo é diversificado, tem desejos em comum, mas formas de abordagens diferentes. Eu acho isso ótimo porque quem lê o grupo acaba tendo uma visão panorâmica da coisa. Eu cheguei nesse blog assim que fui iniciada em 2008 e como fiz questão de viver tudo como descoberta nesse meu início de período como iyawô, prefiro, sinto e preciso falar mais sobre essa minha relação individual com o sagrado porque é o que a estrutura em que eu vivo me proporciona. Por isso, me sinto muito bem quando vejo que pessoas se percebem em minhas palavras e pessoas que sentem tocadas, como você.
Axé!
VERDADE!
Colofe!! Vivo na España sou iniciada (bori),Yemanja Saba, gostaria d saber de limpizas corporais para meu ori, corpo e ambiente de trabalho(sou prostituta) desde ervas,defumacao,perfumes*… Me sinto demasiada anciosa, as veses un poco depreciva. Tambem me encantaria saber de alguns agrados para exu. Desde ja agradeso e mt axe a todos. Obs: desculpem más necessitava perguntar.
Antonia,
O correto seria você recorrer a sua zeladora para que abra um jogo e veja seus caminhos e tire os ebós necessários. Borí é para ser feito anualmente ou no máximo a cada dois anos.
Axé.
Muito rico seu texto!!!
Me ajudou a entender mais um pouco.
Dayane, boa tarde vi no blog ori o Tomege dizer que você é do nagó Egbà e minha mãe é de uma casa que se intitula nagó, eu sou de Ketu e estranho muito algumas coisas, lá dizem que minha mãe é de Yansã balé e Ogum Yara, mas esse não é um falangeiro? lá não se bola de santo, oxumarê é uma qualidade de Oxum e se assentam catiços junto do santo ex: “Exú caveira é o guardião do meu santo”, eles cantam em nação, fazem bori e recebem o orixá (antes da feitura, ele da rum e tudo mais), minha mãe vai fazer o santo agora e um tal aborijenan no qual vai ganhar o Deká! O que acha Dayane?
Ah e não abrem cura nem no Ori, a ialorixá dela falou que só abrem quando pede e falou que a única cura que ela tem foi um caboclo dela que pediu? Como assim caboclo? Tenho medo da minha mãe estar numa bagunça
Jan,
Eu fui iniciada no nagô Egbá sim. O nagô Egbá é uma nação típica de alguns lugares do nordeste, principalmente do Recife e acabou exercendo influências rituais nas outras nações que chegaram aqui. É tanto que grande parte dos mais velhos de santo que são outra nação hoje foram iniciados há muito tempo no nagô e posteriormente migraram de nação.
A presença do sincretismo foi e ainda é muito forte no nagô e como a cidade também passou por um período de repressão religiosa muito grande isso trouxe algumas consequências: esse sincretismo, acredito eu, é uma delas. Portanto, é comum terem casas que cultuam o nagô e a umbanda com o mesmo grau de importância.
Segundo eu aprendi, inicialmente as práticas de iniciação no nagô não eram iguais as das outras nações com essa sequência de feitura, obrigações de ano e as dos sete pra demarcar a maioridade religiosa. No nagô as filhas de santo tomavam vários boris, davam muitas obrigações aos seus orixás, fazia os assentamentos, aprendiam tudo como uma iyawô aprende e depois que ela era devidamente preparada, ela fazia a feitura e a mãe de santo levava os igbás para a sua casa. Com o tempo as pessoas devem ter confundido as coisas e agora tem isso de iyawô\deká. Isso “não existe”. No nagô o caminho traçado era numa dinâmica oposta a do ketu e outras nações.
Provavelmente sua mãe está numa casa muito influenciada pela Umbanda e, tire a minha dúvida, talvez ela nem seja raspada nessa feitura.
A nagô já passou por adaptações. Eu já faço parte da geração que foi iniciada, tomou as obrigações de ano e cheguei aos sete pra ser agora egbon, por exemplo.
Axé.
É Dayane, mesmo nessa obrigação não vai raspar, vai lavar cabeça com amassi e fica recolhido no quarto de santo. Obrigado por me esclarecer, tenho muito medo de fazer tudo isso e acabar que essa casa não é nem uma coisa nem outra aí a vida dela só regredir! Eledà Oboscifuò!
Jan,
Aonde fica a casa em que ela está?